Fear Inoculum ou Ode Aos Homens Maduros

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Tool ao vivo em Lisboa, 2019

Os Tool são uma daquelas bandas imperscrutáveis que parecem tocar pessoas diferentes de formas diferentes. Se, para uns, são uma banda de metal, para outros estão longe disso. Se há quem lhes chame simplesmente rock, há quem lhes acrescente o progressivo. Metal progressivo? Herdeiros de quê, afinal? Yes, King Crimson, Pink Floyd, Rush? Ou Melvins? Faith no More, Jane’s Addiction?

Possivelmente todos. E mais alguns. E é isso que faz da música dos Tool algo tão simultaneamente familiar, mas invulgar. É porque quando se é um músico deste calibre, como Adam Jones, Danny Carey, Justin Chacellor e Maynard James Keenan, não se deixa levar por convenções e caixinhas onde só cabem gostos limitados de pessoas limitadas.

A cultura musical extensa dos membros da banda está patente na música que produzem, assim como se fazem sentir as suas personalidades e sensibilidades diversas. Da arte visual, í  exploração sónica, ao famoso vinho do Arizona.

Não apanhei os Tool no iní­cio. Foram-me apresentados mais tarde na penumbra de um estranho restaurante italiano, no lobby de um hotel agora defunto, na Filipe Folque. Ao longo dos anos, fui desenrolando a meada de riffs, poliritmos e poemas melancólicos que fazem Undertow (1993), í†nima (1996), Lateralus (2001) e 10,000 Days (2006).

Com uma média de 4 anos entre álbuns, a banda calou-se, subitamente, durante mais de uma década, para finalmente lançar “Fear Inoculum” em 2019. Embora existam muitas músicas da banda que estão entre as minhas preferidas de todos os tempos, como Schism, Jambi, The Grudge, The Pot, ou í†nima, este último álbum, como peça única, é o melhor álbum de Tool até í  data.

Não que espere que produzam outro, talvez não seja boa ideia. Pelo menos não nos próximos 10 anos. Mas se 10,000 dias eram os 27 anos que levamos a crescer e começar a perceber que vida é a nossa, que pessoa somos, Fear Inoculum é a Ode Aos Homens Maduros. Com 46 anos, uma década menos que a média de idades dos membros da banda (só o Justin Chancellor é que tem 47), este disco fala ao mais í­ntimo do meu ser. A inoculação do medo — de morrer e de viver — a capacidade de enfrentar a realidade tal como ela me parece ser e não como desejo que seja, sem exercí­ciozecos fúteis de gratidão e saudação ao sol, mas com a cara descoberta e de frente para a chuva e o vento que cortam a fantasia de uma vida inventada.

Desde as primeiras audições que comecei a perceber que havia um pathos nesta música que parecia colar-se ao meu corpo e entranhar-se, pelas meninges, até í s curvas incompreensí­veis da masa cinzenta. Esta coisa inexplicável de sermos como somos. Aceitar que esta merda é um caos do caralho e que não vale a pena fingirmos que vivemos mais do que uma fracção de segundo, ou que compreendemos seja o que for do que nos rodeia muito mais distante do que uns milhares de quilómetros.

Como é que um gajo vive mais de meio século e lhe parece tanto e tão pouco? Quando é que as “manias dos miúdos” começam a ser simplesmente a nova norma, das novas gerações, aquilo que nos substituirá? E o que ainda temos para contribuir para este mundo, que não passe por patético? Que luta ainda é valiosa? Para cada um de nós e para o colectivo?

Seja como for, a verdade é que podemos enfrentar tudo isto com o brilho nos olhos de um ser vivo que consegue ser e não ser, simultaneamente e, perante um Universo absolutamente incompreensí­vel, conseguimos dizer que afinal percebemos tudo. Vivemos e morremos ignorantes, mas sempre que um de nós se levanta e dá os primeiros passos, é como se todos nos erguessemos com a intenção de levar a bandeira da existência — e não a mera vida — um espaço-tempo mais í  frente.

Sound the dread alarm
Through our primal body
Sound the reveille
To be or not to be
Rise
Stay the grand finale
Stay the reading of our swan song and epilogue
One drive to stay alive
It's elementary
Muster every fiber
Mobilize
Stay alive
("Descending")

A proeza deste álbum é que faz tudo isto com as letras, a voz, os instrumentos, a música, o ritmo, o som. Tudo é uma espécie de uní­ssono, simultaneamente pesadí­ssimo e etéreo. A execução é a que se espera de músicos que sempre estiveram acima da média e que têm do seu lado o benefí­cio da experiência; a produção (da banda) é monstruosa e absolutamente infalí­vel. Só com um domí­nio total do estilo, da teoria e prática da música e dos métodos de gravação, mistura e masterização se conseguem transformar coisas simples, uma guitarra, um baixo e uma bateria numa espécie de terramoto avassalador que, afinal, parece ser apaziguado com a voz de um homem de 55 anos cuja vida é produzir vinho e que, por acaso, é um dos mais extraordinários vocalistas de rock dos últimos 30 anos.

Calo-me. E deixo que a minha verborreia de pura admiração seja substituí­da, mais uma vez, pela música de quatro homens maduros.

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