Tendo sido criança durante os anos 70 e 80 e tendo agora filhos que são crianças já na segunda década do novo século, é impossível não reparar em todas as pequenas diferenças que existem no mundo entre o “meu” tempo e o deles.
Há coisas absolutamente evidentes e que me fariam estar aqui o dia todo, como não haver computadores pessoais em 1980, quando eu tinha oito anos e como agora o meu filho de oito anos maneja um comando de PlayStation durante horas para jogar Minecraft que, ironia ainda maior, é um jogo moderno que recorre a gráficos já considerados “clássicos” como linha estilística.
Mas não, nada disso. Interessa-me mais falar dos comportamentos novos em que participamos todos, que envolvem as nossas crianças mas que, no fundo, devem ter sido criados pela nossa própria geração.
As festas de aniversário, por exemplo. Não é que eu não tenha tido festas de aniversário ou que nunca tenha ido a nenhuma, sim, “fiz” (leia-se, os meus pais fizeram), algumas festas com amigos da escola e fui a algumas eu também. Mas agora todos os meninos fazem festa de aniversário e convidam todos os meninos da escola. Todos.
E não nos ficamos por aí: as festas são, invariavelmente, organizadas em espaços que têm surgido por aí como cogumelos, especializados no assunto. São festas temáticas, em parques de diversões, salas de jogos ou quintas com animais. Custam sempre uns duzentos euros ou mais (aos paizinhos que organizam, claro) e geralmente ocorrem em paralelo com mais uma, duas, três, cinco, sete festas, no mesmo espaço.
Já estive em festas em tendas com insufláveis, em picadeiros com cavalos, em matas com arborismo, em ginásios com teatro para miúdos, enfim, de tudo um pouco.
Os meninos fazem anos, os amigos são todos convidados e toda a gente vai, mesmo que haja uma festa no sábado de manhã e outra no sábado de tarde, de dois meninos da mesma turma, em que os convidados são os mesmos. Ou uma no sábado e outra no domingo logo a seguir. Toda a gente se junta outra vez, num outro espaço de festas com baldes de pipocas, tigelas de batatas fritas e garrafas de Cola do Lidl.
Quando as duas ou três horas de aluguer do espaço começam a aproximar-se do fim, é chegada a altura do bolo e de cantar os parabéns. Até aqui tudo bem, canta-se os parabéns ao alegre petiz, um dos amigos está a um canto amuado e a recusar-se a cantar (sim, confesso, muitas das vezes é um dos meus), outro chora ao colo da mãe porque algo correu mal na última volta no castelo mágico e uma série de adultos que passaram a manhã a fazer conversa de circunstância começam a recuperar o brilho nos olhos de quem em breve estará ao volante do seu automóvel, a caminho do Pizza Hut.
Mas aqui entra outra neo-tradição: as canções de aniversário. Originalmente, cantava-se o “Parabéns a você” e isso chegava perfeitamente. Se algum miúdo queria apagar novamente as velas, cantava-se uma versão rápida da mesma canção, com “lá lá lá” nos versos e depois um aplauso para o soprar da coisa.
Agora não. Agora, depois do “Parabéns a você”, o aniversariante, muitas vezes instigado pela mãezinha (quase sempre a mãe, o pai está do outro lado, a tirar fotos com a máquina fotográfica cara demais, que só sai do saco para estas ocasiões), instigado pela mãe, dizia eu e muitas vezes lutando contra uma timidez compreensível por estar rodeado de pessoas que não conhece, canta “Obrigado amiguinhos”. O “Obrigado amiguinhos”, é a canção de agradecimento a quem cantou o “Parabéns a você”, é como se tivéssemos que obrigar as nossas crianças a agradecer publicamente a todos por terem ido í festa demasiado extravagante que nós próprios os ensinámos a desejar anualmente.
Quando comecei a ouvir isto, primeiro pensei que fosse só uma fase, mas desde então, a coisa tem-se multiplicado e já praticamente não há festa de aniversário em que não se cantem ambas as canções. Ambas? Ambas não, porque há mais! Sim, há mais! Depois das duas canções, todas as crianças irrompem em “Parabéns para ti, parabéns para ti, mas o bolo é para mim!”. Uma terceira canção, de teor humorístico que finalmente permite que se avance para o corte do bolo, o lambuzamento das caras e a partida, em derrapagem, dos veículos, rumo a casa ou a uma refeição decente.
E o bolo? O que aconteceu ao belo bolo coberto de maçapão, com um magnífico “parabéns” manuscrito a chocolate e com flores azuis se for menino e flores cor de rosa se for menina? Ou o bolo campo de futebol/rato Mickey? Nada disso, os bolos agora são fantásticos (e são mesmo!), verdadeiras esculturas de pasta de açúcar e recheio de chocolate. São todos feitos por “cake designers” e custam outros duzentos euros. Não estaremos a exagerar? Quer dizer, são belos bolos, mas… São bolos, aquilo é para cortar aos bocados e comer.
Mas mesmo depois de violentarmos uma estatueta comestível, ainda não é hora de partir. Não, ainda não estamos despachados, porque quando a festa termina é chegado o momento de outra coisa que eu nunca tinha visto na vida, mas que agora é standard: o saquinho de brindes.
Todos os meninos que foram í festa têm direito a um saquinho com brindes, no final. Os saquinhos costumam conter coisas diversas como gomas, balões e um pequeno brinquedo como um bonequinho, carrinho, bolinha saltitante, etc. É uma simpatia, não digo que não. Mas não é simpatia suficiente alugar um parque infantil inteiro, pagar a uma moça para pintar borboletas na cara dos miúdos e a dois palhaços para fazerem animais de balões? É mesmo preciso entregar saquinhos de brindes no final? Que mais? Uma massagem nas costas cansadas dos pais?
Ou seja, não só temos que comprar umas prendas para o nosso filho aniversariante, como ainda temos que comprar mais vinte e cinco prendas para os seus vinte e cinco colegas de escolinha, convidados da festa.
Mais do que questionar a validade de qualquer uma destas coisas, eu pergunto-me é de onde vieram. Nada disto foi ideia minha, garanto! Mas foi de alguém que andou comigo na escola, quase de certeza, ou talvez de alguém um pouco mais velho, mas não da geração dos meus pais, altura em que nada disto existia.
Portanto, vamos lá ver… Acusem-se! Quem de vocês, que cresceu nos anos 70 ou 80, que, na melhor das hipóteses, fez um aniversário no baldio nas traseiras da vivenda clandestina de um tio na Charneca da Caparica, com um bolo rectangular, branco, com dois estrumpfes de plástico em cima, com quatro ou cinco dos vossos melhores amigos (três nem na mesma escola andavam) e se limitaram a ouvir o “Parabéns a você”, cantado uma única vez e já com um certo cheiro a álcool no ar, é que inventou todas estas novas tradições que nos custam dinheiro, causam ansiedade e não servem para absolutamente nada?
Mais uma ou duas gerações e as festas de aniversário vão tornar-se verdadeiras cerimónias com pompa e circunstância, quando na verdade, se calhar, dois ou três miúdos, umas prendas, umas sandochas e um bolo, chegavam.
Defendo, portanto, que nisto das festas de aniversário, mais simples é, muito provavelmente melhor. É que uma coisa não muda, por muitos anos que passem: dá-se um brinquedo super sofisticado e moderno a uma criança e ela vai achar muito mais piada í caixa em que ele veio!
Há já cinco anos atrás, comecei um Tumblr para escrever pedacinhos de texto, em inglês, que me passavam pela cabeça e me pareciam sempre não ter lugar no Macacos Sem Galho, não só por causa da língua, mas também porque muitas vezes são uma manifestação demasiado óbvia da minha personalidade sem deixarem de ser absolutamente obscuros, í s vezes, para mim próprio.
Sempre vi aquele espaço como uma coisa recente, onde caem precisamente aqueles pensamentos que não me parecem encaixar em mais lado nenhum e no entanto, esse recente já leva cinco anos. Como tantas outras coisas que faço, é mais um objecto perdido, í deriva por aí, mas pelo menos ainda vai tendo batimento cardíaco.
Assim sendo, convido-vos a banharem-se na neurose que é o Monkey Brain, caso não o conheçam já. E já agora, a olharem para a vossa própria vida e perceberem que coisas recentes têm para aí que, afinal, bem vistas as coisas, já levam uns aninhos em cima.
Li recentemente o primeiro volume da série «Min Kamp» («A Minha Luta»), de Karl Ove Knausgí¥rd. O livro chama-se simplesmente «Min Kamp 1», embora eu tenha lido a tradução para inglês do original norueguês, que recebeu o subtítulo «A Death In The Family».
Confesso que para uma pessoa que gosta de escrever e adora palavras e frases, ritmo e estilo não sou um grande leitor e certamente não estarei armado com a retórica necessária para fazer uma crítica do livro que faça lhe faça jus ou que seja informada, comparativa e até literariamente contextualizada.
Por isso, opto por dizer que gostei muito do livro, que o li como se conversa com uma pessoa e se vai contando e ouvindo histórias que fluem naturalmente. O livro é autobiográfico, mas a vida do autor não é invulgar, embora para quem cresceu em Portugal seja pelo menos curiosa por passada na Noruega. Algumas situações são mais dramáticas, outras, mundanas; mas a forma como as histórias são contadas e o alicerce emocional que as sustenta são tão humanos que se tornaram parte do meu dia í medida que lia.
No fim do livro, não fiquei a achar que Karl Ove é um homem extraordinário, com uma vida fenomenal, mas que é um homem normal, com pensamentos normais e sentimentos normais e senti um reflexo de mim próprio, nele. Ou talvez vice versa.
Não que encontre na narrativa um espelho de situações por mim vividas, porque na verdade, pouco ou nada terei em comum com Knausgí¥rd, a não ser, precisamente, a humanidade, os pensamentos automáticos, as dúvidas, as associações por vezes inesperadas, as emoções que ocasionalmente se revelam independentemente da minha vontade.
Tenho pena de não saber ler norueguês, mas gostei bastante do estilo da versão inglesa, solto, informal e muito directo, sem artefactos e, no fundo, realista. Mas esse realismo não esconde a visão de um escritor, um estudante de literatura e de arte que num momento vulgar, não consegue — porque não pode, nem quer — ignorar a beleza das coisas simples e incontroláveis que o rodeiam.
«Min Kamp» é composto de seis volumes e fiquei com vontade de arrancar para o segundo. Com as minhas desculpas para eventuais banalidades aqui produzidas, aconselho vivamente a leitura deste primeiro volume.
O que é um apocalipse? Apocálypsis – uma revelação. Não um final, mas uma mudança nascida de um momento de compreensão definitiva. Talvez catastrófica.
Um momento que vamos esperando e evitando, em doses iguais. Uns dias empurra de um lado, outros, do outro. Mas sabemos que enquanto mantivermos um braço de ferro entre os nossos próprios braços, nunca vamos ganhar essa clarividência que tanto nos falta. Passamos a vida convencidos de que certos pensamentos e ideias são castastróficos e destruidores, que não pode haver revelação e consequente mudança sem a hecatombe que lhe associamos.
Mas com o passar do tempo e talvez com alguma ajuda, começamos a perceber que nada disso faz sentido. Que algumas verdades que tomávamos por basilares são só possibilidades num mundo onde o que não faltam são outras possibilidades. São apenas pensamentos e ideias válidos e aceitáveis que podem facilmente co-existir com qualquer forma de realidade que possamos habitar.
Crescemos a olhar para nós próprios como pessoas de amplos horizontes, moral equilibrada, filosofia flexível e demoramos anos a fio a perceber que somos todos dogmáticos e fechados para alguém, somos todos inflexíveis e retrógados para outras pessoas. E essas outras pessoas somos nós próprios, a nossa própria versão apocalíptica – de olhos abertos, conhecedores, livres.
Mas acordamos todos os dias, com o rastilho numa mão e o fósforo na outra, incapazes de os juntar para enfim podermos espreitar e ver o que está para lá do muro, sem receio que nenhum destroço nos caia em cima e nos esmague, mesmo ali, í beira da nossa própria revelação.
Recentemente, vi o Whiplash. Um filme que separa ser apenas bom de ser o melhor e o faz submerso em jazz e com uma realização estupenda e uma fotografia deliciosa. A permissa já de si é boa. Mas o facto de fazer tudo isto sem cair em demasiados clichés melodramáticos faz de Whiplash um dos meus filmes preferidos dos últimos anos.
É verdade, estou longe de ser o consumidor de cinema que em tempos fui. As razões para isso são múltiplas, mas a mais forte é provavelmente algo patética: a ideia de que se vir um filme e for mau, incorri num desperdício de tempo catastrófico. É, portanto, especialmente bom quando faço esse investimento e saio com o resultado diametralmente oposto: um filme que não só me deu imenso prazer ver, como sei que vou rever várias vezes.
Whiplash não tem uma história complicada ou sequer imprevisível, mas está bem contada e parece-me humana. Apesar dos dois personagens principais serem especialmente bons músicos, a um nível que muitos excelentes músicos nunca chegarão, não deixam de ser apenas duas pessoas. Nem um é herói, nem o outro vilão. Simplesmente, vivem num mundo onde o nível de exigência e a especialização é de tal ordem que não existe margem de manobra para ser menos do que absolutamente brilhante.
Existe muita música onde se pode ser muito relevante, bom, interessante, até mesmo bem sucedido. E depois existe o mundo representado no filme (acredito que o mesmo pudesse contar uma história de um executante de música clássica, onde acredito que o nível seja semelhante ou superior) e sim, eu acho que é importante gostar-se de música para ver este filme. Não será essencial, porque é genericamente um bom filme, mas acho que há certos detalhes que poderão ser melhor apreciados por amantes de música.
Tentem acompanhar onde estão os desafinos ou as falhas de ritmo detectadas pelo implacável professor Fletcher ou perceber como ele elimina um saxofonista antes que ele consiga tocar a sua terceira nota. Pela simplicidade, pela realização cuidada e pela fotografia cor de âmbar, Whiplash agarrou-me, pelos detalhes musicais, entrou para a minha lista de filmes preferidos.
Whiplash é um filme de 2014, estreado em Sundance. É escrito e realizado por Damien Chazelle e tem Miles Teller no papel de Andrew, um jovem aspirante a melhor baterista do mundo (é mesmo ele que toca bateria no filme) e J. K. Simmons, como seu exigente e agressivo professor Fletcher. Vale a pena ver, fica o trailer.
Tendo sido criança durante os anos 70 e 80 e tendo agora filhos que são crianças já na segunda década do novo século, é impossível não reparar em todas as pequenas diferenças que existem no mundo entre o “meu” tempo e o deles. Há coisas absolutamente evidentes e que me fariam estar aqui o dia […]
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