A crise não existe

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

Hoje fez-se uma greve geral. Foi uma greve em protesto contra as medidas de austeridade do Governo para combater a crise económica instalada. Este é o governo que nos ia salvar do anterior, foi este que as pessoas escolheram porque o anterior era péssimo. Este é, está claro, muito pior.

Não sou amigo da ideia da greve feita desta maneira. Acho que uma greve deve ser uma alavanca. Um duelo entre pistoleiros, para ver quem cede primeiro. Uma greve prolonga-se até obter resultados, não se faz num dia sem qualquer contrapartida de quem se quer pressionar. O Governo não vai reagir, não vai mudar, não vai cair, por causa desta greve.

Acho que foi pouco útil. Talvez até tenha ajudado o Governo porque as pessoas não trabalharam, foram passear, fizeram compras de natal, talvez tenham ido a uma manifestação; desanuviaram, desabafaram, talvez se tenham acalmado um pouco e agora o trabalho pode continuar.

Que trabalho?

Bom, neste momento, eu vejo as coisas de uma forma razoavelmente simples e muito provavelmente, o que eu vou escrever a seguir vai soar a teoria da conspiração a muita gente, mas é-me indiferente; esta é a minha visão das coisas, independentemente do que isso me faça parecer.

Neste momento, Portugal, como outros paí­ses “periféricos” da União Europeia, estão a ser terraplanados. Não em termos geológicos, mas em termos sociais e económicos. O nosso poder de compra está a cair de uma maneira muito palpável. Já todos tí­nhamos ouvido falar da crise, mas nunca tantos de nós tinham chegado ao fim do ano e visto centenas de euros desaparecer do subsí­dio de Natal. É claro que alguns nunca o receberam sequer, mas o impacto da remoção de algo que muitos têm como adquirido é uma chapada de realidade muito mais evidente do que qualquer subida de IVA.

Na sua última visita, essa coisa inexistente chamada Troika, que só tem um nome para os jornais a poderem por na capa, recomendou, entre outras coisas, que o sector privado considere cortar nos salários para que o valor da mão de obra portuguesa se torne mais competitivo.

Estamos então, a ser social e economicamente terraplanados. Quando estivermos completamente de rastos, pouco mais seremos que uma massa razoável de mão de obra barata, na periferia dos grandes paí­ses Europeus, ou então, se quisermos simplificar, da Alemanha que, consciente ou inconscientemente, continua a alimentar o sonho de nos dominar a todos.

Considerem então, se estiverem para me aturar as teorias, o quão prático é ter fábricas da BMW, BASF ou Siemens instaladas em pequenos paí­ses muito próximos, dependentes de um sistema económico dominado por pessoas que se sentam nos boards dessas empresas, com a mesma moeda e ainda com o extra de serem excelentes sí­tios para passar férias.

Ah, e claro, com uma mão de obra baratí­ssima.

Deslocalizar produção para a China pode ser barato, mas é uma grande chatice, apesar de tudo. As viagens são longas, caras e cansativas, a lí­ngua é um universo í  parte, a moeda é diferente, a economia é outra, já para não falar no tempo de shipping de materiais e produtos para o outro lado do mundo.

É significativamente melhor ter isso í  porta de casa.

Claro que escolhi três empresas alemãs ao acaso, não quis com isso dizer nada de especí­fico, só atesta í  minha ignorância sobre quem são os dirigentes económicos por trás dos polí­ticos que agora governam a Europa. Mas a minha ignorância é a vossa ignorância. Porque ninguém sabe muito bem; conhecemos alguns fantoches, mas certamente que não conhecemos todos os bonecreiros.

Acreditem que não sou dado a teorias conspiratórias. Eu acho que isto é mesmo assim. Há um grupo de pessoas, organizados ou não, não interessa – não tem que ser nenhum secto, ou sociedade secreta – que pensam da mesma maneira, que vêem o mundo í  transparência de folhas de Excel, projecções económicas e modelos financeiros. Pessoas que não pensam em pessoas, mas em números, que não se lembram de populações, mas de estatí­sticas e que concluí­ram, não necessariamente em plenário, mas numa espécie de hive mind de drones académicos e investidores bolsistas, que era vantajoso empobrecer uma parte da Europa para ter mão de obra barata e território em saldo para explorar.

O sonho de uma Europa unificada é bonito, mas afinal, descobrimos que o nosso, não é igual ao de toda a gente. O nosso consta de uma Europa em que Portugal é igual í  Alemanha, í  Espanha, ao Reino Unido, em que todos somos prósperos, usamos a mesma moeda, celebramos alguns dias em conjunto – um qualquer “dia da Europa” – trabalhamos nos paí­ses uns dos outros, viajamos livremente. Mas as pessoas que trabalham para realizar o sonho da União têm outro sonho, um sonho diferente, em que o território é organizado em paí­ses centrais e periféricos, populações nobres e campónias, em que uns trabalham em alta finança e “coisas complicadas” e outros montam carros e telemóveis para os primeiros usarem.

E nem estou a dizer que é por mal, é porque é assim mesmo. É assim que os seres humanos sempre se organizaram e é assim que vão continuar a organizar-se. Porque quando temos muito, o nosso primeiro instinto é obter mais e não partilhar o que temos. Num mundo em que o sistema económico é tão complexo que apenas uma fatia minúscula da população o compreende, não se pode esperar mais. Quando já não investimos numa produtora de aço, porque sabemos que vai ser construí­da uma ponte com esse aço que vai valorizar a empresa, mas investimos em falências, em possibilidades de eventualidades de negócios, em dí­vidas dos outros, chegámos a um ponto de decadência tal que já não há caminho de regresso.

O nosso paí­s já está comprado. E foi barato. A crise não existe, o que existem são saldos de paí­ses.

Já não somos governados pelos partidos que estão na Assembleia da República. Acho que se percebe agora que, até há pouco tempo – e apesar de tudo – éramos um paí­s autónomo e independente. Agora já não somos, ou estamos muito próximos de deixar de ser. A Grécia também já não é, como bem o demonstra a nomeação do novo Primeiro Ministro do paí­s por Bruxelas e não pelos Gregos.

E por tudo isto, apesar de me opor de forma absoluta í s ideias das pessoas que estão sempre a clamar por enforcamentos públicos e guerras civis, começo a pensar que não há mais solução nenhuma para travar o andamento desta terraplanagem trágica do nosso e de outros paí­ses que não passe por uma revolta violenta das populações. Não é uma greve geral que vai fazer diferença, disso, tenho a certeza.

Para terminar, hoje dizia í  minha mulher que sempre tinha pensado sobre como seria viver numa daquelas épocas de grande agitação, como a II Guerra Mundial; agora estou convencido que em breve vou descobrir. Vamos só aguardar mais um pouco, até que um tecnocrata com um ar bem intencionado, nos venha dizer que, para nosso próprio bem, o Imperador vai servir um mandato um pouco mais longo que o habitual…

PS: dêem, por favor, o devido desconto pelo facto deste senhor, Nigel Farage, ser presidente do Partido da Independência do Reino Unido e, essencialmente, anti-União Europeia e vejam este ví­deo:

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24 comentários a “A crise não existe”

  1. Sérgio says:

    Pelo menos para uma coisa serviu esta greve — permitiu constatar, com alguma clareza, a falta de solidariedade que existe nesta nossa sociedade. Foi triste ver os insultos e intolerância “í  solta” nas redes sociais contra “grevistas”, “parasitas”, etc.

    • Isso é comum em qualquer greve. É claro que existe falta de solidariedade: há muita gente que considera uma greve inútil, uma perda de tempo e de dinheiro.

      Eu tendo a respeitar as opções das pessoas, mas nem toda a gente pensa assim.

      • Sérgio says:

        A greve é a forma democrática de protesto e reivindicação.

        A não existencia de greves deixaria os protestos entregues “í  rua”.

        • E que resultado obteve esta greve?

          • Sérgio says:

            Permitiu demonstrar a indignação de muitos trabalhadores.

            Por outro lado impediu sustentar afirmações do tipo “o povo concorda com estas polí­ticas”.

            As lutas por direitos e polí­ticas não se resolvem em acções isoladas e únicas. Constroem-se ao longo do tempo. Este foi um passo.

            • Não imagino ninguém com cara de pau suficiente para dizer que o povo concorda com seja o que for, independentemente de greves feitas.

              O resto, concordaremos em discordar: não vi nesta greve um passo para seja o que for, vi um transtorno para quem quis ir trabalhar, vi os centros comerciais cheios (fui almoçar a um) e vi o Governo encolher os ombros e continuar na sua. Lamento, mas continuo a achar que a greve, neste modelo, é inútil.

              • Sérgio says:

                As acções geram reacções. A greve é a forma democrática de reagir.

                O que sugeres em alternativa?

                • Não sugiro nada em alternativa, a minha crí­tica é í  greve de um dia sem reacção. Sejamos claros: não houve reacção í  greve, não só continua tudo na mesma, como hoje o PM já deu a entender que no futuro é possí­vel que se corte também nos subsí­dios do privado.

                  Para mim, greve é braço de ferro, é não saí­mos daqui enquanto não houver mudança. Uma greve de um dia é, mantenho, pouco útil.

  2. Ivo Santos says:

    Embora não compartilhe a visão a 100% já me ocorreu a ideia de uma 3ª Guerra Mundial, cada vez menos nuclear e cada vez mais economica, com os EUA a necessitarem da máquina do armamento para criarem emprego e dinheiro, os Europeus a tentarem-se matar uns aos outros para mandar na Europa, os Chineses a fazer o papel do Japão na II Guerra Mundial e todos a tentarem tirar um pedaço de Africa, ainda rica em recursos minerais.

    E depois de matarem milhoões, voltamos í  properidade falsa em que os paises são reconstruidos, voltamos todos ao consumo, até isto tudo estourar outra vez…

  3. Arzebiu says:

    Acho que só falta incorporares na tua teoria o facto que desde o 25 de Abril Portugal ter vivido acima das suas expectativas e termos uma mega dí­vida, montes de juros para pagar, e nem sequer gerar receita ao final do ano. Não sei porque é que as pessoas apontam o dedo ao governo quando não há nada a fazer. Era o mesmo que tu te casares e a tua mulher te dizer: olha eu tenho montes de dí­vidas, ganho 500 mas gasto 800 por mês, e os bancos não me emprestam dinheiro sem ser a juros altos por causa do risco de não pagar.

    O que é que uma pessoa pode fazer? Antes da troika o governo estava a não sei quantos meses de ficar sem $$ para pagar ordenados. As pessoas que fazem greve não se apercebem que têm um patrão falido e que podem levar uma trancada nos rendimentos mas ao menos têm trabalho, por oposição í s várias pessoas que eu conheço do privado que já levaram uns patins.

    • Não me esqueci disso: “Há um grupo de pessoas, organizados ou não, não interessa – não tem que ser nenhum secto, ou sociedade secreta – que pensam da mesma maneira, que vêem o mundo í  transparência de folhas de Excel, projecções económicas e modelos financeiros. Pessoas que não pensam em pessoas, mas em números, que não se lembram de populações, mas de estatí­sticas e que concluí­ram, não necessariamente em plenário, mas numa espécie de hive mind de drones académicos e investidores bolsistas, que era vantajoso empobrecer uma parte da Europa para ter mão de obra barata e território em saldo para explorar.”

      São estas pessoas, na Europa, em Portugal, pessoas que só pensam nos seus números e vão ajustando as coisas até dar certo sem se importarem com o impacto que isso tenha nas pessoas. É essa forma de agir e pensar que levou o nosso paí­s í  situação em que se encontra e a este esbatimento da soberania a que estamos entregues.

    • Sérgio says:

      A greve de ontem não foi um protesto contra o problema e a crise. Eles existem, têm causas diversas, e são bem reais.

      A greve de ontem foi contra as polí­ticas seguidas para resolver os problemas.

  4. Natacha says:

    Pedro, você é brilhante.

  5. catarina says:

    É verdade, infelizmente.
    O que nos lixou foi termos de começar a utilizar imaculadas cozinhas em inox para fazer chouriço em vez do tradicional fumeiro.. que era sujo e cheio de fumo mas era precisamente isso que dava aquele gosto especial… ;-)

  6. Miguel says:

    “Num mundo em que o sistema económico é tão complexo que apenas uma fatia minúscula da população o compreende, não se pode esperar mais.”

    Esse problema é bastante real, sobretudo tendo em conta que um dos pilares do mercado livre é a simetria de informação. Quando tal não acontece o mercado falha. Um exemplo académico tí­pico: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Market_for_Lemons

    Obrigado pela opinião.

  7. Sérgio says:

    Concordo plenamente!!
    E não me venham com tretas que os Portugueses não trabalham… tenho no último ano trabalhado em diversos paí­ses da UE e, é verdade que nós temos muitos defeitos em relação ao trabalho, mas não considero que trabalhemos menos que os outros!!!
    Eu acho que o nosso principal problema foi realmente começar a viver acima das possibilidades e, nesse processo, “matar” com a produção nacional e exagerar na importações… Agora pouco há fazer, estamos nas “mãos” deles!

  8. artur says:

    Outra guerra? Não. Está descansado. Vai continuar assim durante mais 50-80 anos. São necessárias duas a três gerações para dar a volta a isto. Talvez o neto do teu filho participe numa revolução/guerra. (ainda hoje recordei um álbum velhinho dos Moody Blues – To Ours Children’s Children – nomeadamente, o tema “Watching and Waiting” – é o que estamos a fazer agora…

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