Corn Flakes

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

O carbono era leve. Era decididamente leve.

Fred corria aparvalhadamente pelo deserto com a malinha do carbono na mão, com medo dos snipers, mas consciente que não tinha outra hipótese que não fugir. Fugiu durante horas, em zig-zag, por causa dos snipers, claro. Correr em zig zag na areia era tudo menos fácil e se quisesse ser completamente honesto consigo próprio, acabaria por concluí­r que preferia beber uma cerveja e depois levar um tiro do que evitar o tiro completamente.

Ao fim de bastante tempo, embora não ainda o suficiente para sair do alcance das miras, escorregou e caiu por uma duna abaixo, os dedos firmes na mala do carbono. Os dentes rangiam-lhe. Sob os seus pés, ao fundo da encosta, abriu-se um buraco por onde caiu.

Aterrou num túnel e virando a cabeça rapidamente de um lado para o outro, como um Pardal, certificou-se que não haviam miras laser em lado nenhum. Não haviam mesmo.

Investigou o túnel. Tinha uma direcção, dois sentidos, nada de estranho para um túnel. Piscou os olhos horizontalmente, como lhe era habitual nestas situações e avançou para um dos lados, o que lhe parecia ser o sentido certo, pelo menos, num certo sentido. Passados 45 minutos, pernas cansadas e mala do carbono ainda e sempre leve, deu com uma cidade. Havia uma grande caverna e lá dentro um lago e í  beira do lago uma cidade. Nada de muito grande, doze ou quinze casas, três cavalos e um bimotor. O habitual para cidades subterrâneas.

Aproximou-se com o intuito de tentar obter alguma informação de como poderia seguir para Gundmanshian, onde pretendia vender o carbono.

Os habitantes da cidade eram canibais e rapidamente trataram de preparar um grande jantar. Fred iria ser o prato principal, levemente temperado com vinagre de arroz, raí­z de gengibre, sal e piri-piri e acompanhado de um belo arroz, solto, com pedacinhos de ervas que cresciam na encosta sulfurosa de um dos lados da caverna.

Fred não podia deixar de apreciar o gosto culinário deste povo, porém, com uma valiosa entrega de carbono para fazer, não dava jeito mesmo nenhum ser comido. Talvez noutra altura.

Curiosamente os habitantes tinham uma opinião diferente e o caso ficou bastante complicado de resolver. Fred tinha uma Glock, mas os habitantes ainda eram bastantes e tinham as suas próprias armas, nomeadamente belas lanças esculpidas pelos artesãos, que orgulhavam este povo de tal forma que estavam constantemente a insistir para que Fred visse as pontas afiadas de bastante perto.

Quando menos se esperava (será que se esperava de todo?), as gaivotas fascistas entraram pelo Norte e iniciaram um ataque feroz sobre a pequena cidade. Não deixaram nada intacto e prenderam todos os habitantes. Fred, sentiu-se um pouco aliviado.

Era precisamente í s gaivotas fascistas que tinha que entregar o carbono.

– Tenho o carbono! – gritou na direcção de Ví­tor Galvão, o director-geral das Gaivotas Fascistas. – Está estupidamente leve, não percebo porquê, deu-me um trabalhão dos diabos a fugir dos snipers.

– Nós sabemos, como achas que te encontrámos? – respondeu a gaivota.

– Claro, que parvo, nem me ocorreu… Por acaso não têm nada que se beba? Estou mortinho por uma Imperial.

– Hum… Vamos ao Carvalhal, ao pé da Fronteira, ver se bebemos qualquer coisa também, porque estamos esgotados, eles não têm é imperial, são muito republicanos.

Fred não se preocupou e passado um bocado, após o fuzilamento dos canibais, estava sentado í  mesa com o Ví­tor Galvão, o Rodrigo Santana e o Manfredo Quizaks, mostrou-lhes o carbono.

– Excelente produto… – comentou uma das Gaivotas – Isto vai dar para montes de coisas.

Rodrigo já mastigava um pouco do carbono.

– Pelo menos parece bastante melhor que o anterior, que nos trouxe o Carlos, tivemos que o matar e mandar prender. Tu estás com sorte – sublinhou Galvão com um dedo no ar. – O produto é bom e vamos pagar-to e deixar-te ir embora.

Fred amarfanhou a carcaça com torresmos com a mão esquerda e deu-lhe uma dentada certeira. Mastigou três vezes.

– E o pagamento? – perguntou, firme, mas com uma gota de suor na tempora direita.

– Não te preocupes Fred… O Estado não esquece um bom serviço. – destes assuntos era Manfredo que falava, com a sua voz rouca e intimista – Nas traseiras encontrarás um camião com 400 mil caixas de Corn Flakes, tal como pediste… mas terás que ter uma coisa em conta.

– Sim…?

– O prazo de validade, vais ter que comer tudo em cerca de 2 meses, foi o melhor que pudemos arranjar.

– Bah. – Fred encolheu os ombros, não seria a primeira vez que despachava um pagamento em menos de dois meses, acontecia-lhe constantemente.

As Gaivotas montaram e partiram a galope de volta í  Capital, Fred deixou uma nota de 20 Marrecos em cima da mesa e sorriu. Nas traseiras, o camião ronronava amigavelmente.

Só muito depois de ter atravessado a fronteira é que Fred se lembrou de verificar a carga. Que erro dos diabos… logo para um espião bem treinado como Fred. Deitou as mãos í  cabeça.

Não queria acreditar.

O camião estava cheio de Chocapic. Nem sinal de um Corn Flake.

É o que acontece quando nos metemos com Gaivotas. Especialmente fascistas.

Tags

Deixar comentário. Permalink.

4 comentários a “Corn Flakes”

  1. Anónimo says:

    Neste contexto, conheces “O Outono em Pequim”, de Boris Vian? Recomendo.

  2. Arzebiu says:

    Parece-me um engano a favor do Fred! ;) Ideal era se fosse metade chocapic e a outra metade nestum, para ir variando… :P

    Gostos :)

  3. artur says:

    Há muito tempo que penso que as Gaivotas (fascistas ou não) são as donas da cidade. A menos que os Pombos…

  4. Esta história é muito antiga, acho que é para aí­ do iní­cio dos anos 90. Andava a colocar coisas antigas do blog no WordPress e encontrei isto que já na altura em que originalmente publiquei (2001), não era novo.

    Tenho pena de já não ter tempo nem cabeça para fazer coisas destas.

Deixar um comentário

Redes de Camaradas

 
Facebook
Twitter
Instagram