Porque votava nulo
Publicado em , por Pedro Couto e Santos
O Pedro Timóteo perguntou, nos comentários do meu post sobre o Sócrates e as eleições, porque votara eu nulo ou branco durante os últimos anos e eu comecei a responder-lhe, mas o comentário ia tão extenso que decidi promovê-lo a post.
Aqui vai:
A minha motivação para começar a votar nulo foi o estaladão da realidade, sob a forma não só de um IRC absolutamente absurdo para a minha micro-empresa de 4 pessoas, como também dessa magnífica invenção o pagamento por conta e havendo maneira de não pagar este por evidente falta de fundos (tipo, dinheiro para pagar salários e rendas e contas), o pagamento ‘especial’ por conta ao qual não se pode escapar.
Quando tudo apontava para um futuro brilhante – estando a minha empresa a safar-se bem, mesmo apesar do fim da .com bubble – fui confrontado com esta realidade e senti uma raiva indescritível. Um pouco contra mim mesmo, por ser novo e não saber o suficiente para evitar perder metade do dinheiro que tinha tão arduamente ganho no ano anterior (o que, em Portugal acho que implica ser aldrabão e fugir ao fisco, quem me manda ser honesto?) e muito contra o Estado, contra a maneira como as coisas se fazem, contra a frieza de um sistema que não distingue quatro jovens a tentar fazer pela vida de 10 ou 20 magnatas a dirigir impérios económicos.
Passei a votar em branco porque acredito na Democracia e por isso, para mim, não votar não era opção e os meus votos inúteis eram uma forma de expressar a minha raiva e desilusão por, basicamente, ter visto a resposta a “o que queres fazer quando fores grande”, esmagada assim de um só golpe.
Não sei quem:
a) acabou com o regime especial de micro empresas que permitia que estas pagassem significativamente menos IRC que as outras;
b) estabeleceu uma taxa de IRC perto dos 40%;
c) inventou uma coisa fantástica chamada “derrama” que é um pagamento de mais 2 ou 3 pontos percentuais em cima do IRC e que vai para a Autarquia onde a empresa tem sede;
d) decidiu que o IRC pago sobre os lucros das empresas independentemente deste ser re-investido (só um ano depois é que este investimento tem impacto e entretanto, onde está o dinheiro para manter a empresa a funcionar?);
e) inventou o pagamento por conta, uma medida típica de fazer pagar o justo pelo pecador – como muita gente foge ao fisco, obriga-se toda a gente a pagar pré-impostos sobre um valor de lucro que o Estado imagina que a empresa vai fazer (depois se não fizer, logo se devolve o dinheiro, mas até lá… está do outro lado);
f) inventou o pagamento especial por conta, porque o anterior podia ser “perdoado”, mediante um pedido especial por, basicamente, a empresa estar í rasca; este, o especial, é obrigatório e se a empresa apresentar prejuízo pode reaver o pagamento… mediante processo burocrático complicado e submetendo-se a uma inspecção fiscal – isto é, somos castigados e tratados com desconfiança por requerermos que o Estado nos devolva dinheiro que nos pertence;
g) implementou, em Portugal, o IVA e a sua forma de pagamento completamente absurda em que as empresas são obrigadas a entregar ao Estado o valor de IVA que eventualmente irão receber e não que já receberam, visto que este imposto é cobrado sobre facturas emitidas e não sobre pagamentos efectivamente recebidos o que faz com que muitas empresas tenham que pagar o IVA do seu bolso (ficando coisas como subsídios de férias e mesmo salários ou pagamentos a fornecedores em atraso), uma vez que os prazos de pagamento entre empresas é absurdo (60, 90, 180 dias…).
Quando percebi todas estas coisas, tarde demais, senti-me num sistema feudal. Incapaz e impotente contra o Senhor. Obrigado a pagar para trabalhar, a pagar para fazer negócio nas Suas terras, a pagar para simplesmente ter sede em determinado Ducado.
Não sabia quem tinha feito nada disto, quem tinha feito estas leis – pareceu-me que tudo isto só podia ser produto de todos os partidos, uns por terem feito, outros por terem deixado de fazer. E portanto… deixei de votar em qualquer deles.
Ingenuidade? Certamente. Mas tinha 25 anos na altura, o que se podia esperar? Foi falta de jeito minha e pus-me mesmo a jeito para levar a mocada. Mas para mim, tudo o que disse acima continua válido; a mocada é grande demais.
Acrescento que a questão do IVA é de tal maneira imbecil que quase me faz duvidar da minha decisão de votar no PS. Segundo o movimento cívico “IVA com recibo“, sobre a discussão em plenário da sua proposta, em Julho passado:
Todos os grupos parlamentares da oposição estão assim dispostos a trabalhar para uma alteração da lei existente. Apenas o PS, cujo governo tem maioria parlamentar, afirma através do seu deputado Vitor Baptista:, «Para além de o IVA não ser uma razão dos problema que as PME atravessam, é uma pura demagogia política», afirmou. Aquando do encontro em 21 de Maio com o Movimento, já o deputado do PS dissera que «as empresas deveriam procurar vender apenas para aquelas que pagam atempadamente»
Este deputado não pode estar a falar a sério: ou é ignorante ou está a cumprir agenda. Dzer que o IVA não é problema para as PME é mau e nem é preciso pensar muito: Se eu arranjar um cliente em Janeiro e efectuar o trabalho durante esse mês, passando uma factura de 50 mil euros, tenho que cobrar ainda 10 mil euros de IVA, num total de 60 mil; chegado, creio, a 15 de Maio, tenho que ter entregue ao Estado os 10 mil euros. Imaginemos que o cliente ainda não me pagou, nem pretende pagar tão cedo. Que eu tenho uma empresa de 5 pessoas, todas as quais estiveram envolvidas no projecto porque um trabalho de 50 mil euros assim o exige e mesmo que tenha surgido mais um ou dois clientes neste período, dificilmente os projectos estarão concluídos ou sequer pagos (com sorte, facturados, o que significa mais IVA). Eu chego ao fim do primeiro trimestre, sem ter recebido um tostão dos meus clientes – não é invulgar – mas tendo que entregar 10 ou mais mil euros ao Estado.
De onde vem esse dinheiro? Talvez dos salários que os meus funcionários não vão poder receber.
Em segundo lugar, sugerir que as empresas apenas trabalhem para clientes que pagam atempadamente é completamente absurdo! O que é suposto uma pequena empresa fazer? Adivinhar? Pagar a uma consultora para investigar o cliente de antemão? Desistir de um trabalho que pode viabilizar a empresa por 3 ou 4 meses só porque o pagamento em vez de chegar amanhã, chega em Outubro? É de facto, um fartar de rir… e depois admiram-se de eu votar nulo.
O Estado devia proteger as empresas mais pequenas, geralmente são locais, captam pequenos grupos de pessoas e dão-lhes emprego; quando as empresas lidam em negócios de novas tecnologias devem ser ainda mais cuidadas. Não falo em protecção activa do Estado, não acredito em subsídios e ajudas directas mas é tão simples como:
- Criar regimes especiais para micro empresas ou empresas muito recentes; uma carência de 5 anos ou um valor crescente ao longo de um período idêntico era uma grande ajuda – cinco anos não é muito para o Estado, mas para um grupo de pessoas a tentar montar um negócio pode significar a diferença entre ser ignorante e já ter aprendido umas coisas sobre como melhor a gerir
- Acabar completamente com os pagamentos por conta e especiais por conta para este tipo de empresas. Tais pagamentos não passam de um castigo – apliquem-no a empresas que chegam ao fim do primeiro trimestre com milhões de lucros… não a empresas que chegam ao fim do ano sem saber o que são subsídios de natal e férias, seguros de saúde ou complementos de refeição
- Alterar a forma de pagamento do IVA. Este imposto deve ser sobre o recibo e não sobre a factura; este assunto então é crasso: qualquer ser humano com um mínimo de capacidade cerebral compreende isto, portanto o Governo e os Deputados compreendem isto – negam-se a implementá-lo porque sabem que provavelmente receberiam muito menos IVA, tendo em conta a vergonha que são os atrasos de pagamentos entre empresas. É daquelas situações típicas que faz apetecer deixar de votar: estão claramente a gozar com a nossa cara quando dizem que a medida não é viável.
- Montar um sistema de acompanhamento das empresas que não as torne anónimas aos olhos do Estado. O Estado não sabe quem trabalha nas empresas, não sabe o que elas fazem e trata-as todas por igual, quando umas são claramente diferentes. Uma pequena empresa de ar-condicionado não é igual a uma pequena empresa de investigação científica. A primeira se calhar tem grande volume de negócio, especialmente no Verão, mas pode sofrer mais com desequilíbrios na economia, a outra tem muito mais dificuldade em fazer dinheiro porque não tem um produto de médio/grande consumo, mas uma vez bem financiada pode manter-se mais estável. Aos olhos do Estado, ambas são iguais.
Já lá vão mais de seis anos que não me meto nisto. A empresa existe ainda – nem sei bem como – e a Dee trabalha para a manter e todos os anos ficamos í rasca com o pagamento especial por conta porque temos muito pouca actividade e pouco volume de negócios mas continuamos a ter que entregar esta dádiva feudal, sem falha.
Como já não ando nisto há muito tempo, corrijam-me se algo do que está acima está incorrecto, mas porra… que vontade de não votar em ninguém que eu tenho!