Quando eu crescer, quero ser artista
Publicado em , por Pedro Couto e Santos
Quando era puto e andava no liceu, passava as aulas todas a desenhar nas margens dos cadernos e nas capas dos dossiers. Algures por volta dos 11 anos descobri essa coisa magnífica que é a Marvel Comics. Um tio do meu pai que tem (tinha?), uma papelaria em Moimenta da Beira enviou-nos um caixotinho com sobras de coisas que não tinha vendido e lá dentro vinham umas revistas de quadradinhos que eu nunca tinha visto.
Uma das revistas, já sem capa, era o início da saga da Dark Phoenix, dos X-Men. Fiquei completamente fascinado com aquilo: O Colossus, com pele de aço, que arrancava motores de automóveis em andamento, o Cyclops que disparava potentíssimos raios vermelhos dos olhos, o estranhíssimo Nightcrawler que se teletransportava sempre ao som de pequenas explosões… “banf!” e, claro, o estupendo Wolverine com garras de metal implantadas nos braços e um feitio exasperante.
Pura perfeição, para um rapaz de 11 anos.
Fiquei completamente absorvido por aquele mundo e comecei a ir í papelaria da esquina comprar revistas novas sempre que as havia. Na altura, os super-heróis só nos chegavam, como os patos da Disney, em brasileiro: o Coisa dizia “‘tá na hora do pau!”, em vez de “it’s clobberin’ time”, o Wolverine chamava muitas vezes os seus oponentes de “xará” e não era incomum um ou outro herói soltar um “putz grila!”.
Havia três níveis de tradução dos nomes dos personagens: os que nem eram traduzidos, como o Hulk ou o Wolverine, ou que nem tinham nomes em inglês como o Colossus; os que eram bem traduzidos como o Ciclope, Homem-Aranha ou Capitão América; e, claro, os que tinham nomes que não tinham nada a ver com os originais como o Demolidor (Daredevil, no original), o Destrutor (Havok) ou a fantástica Vampira (Rogue, que é para verem…).
Claro que, nesta idade, me interessava profundamente quem era mais poderoso, quem venceria as batalhas e, claro, quão apertadas eram as camisolas da Jennifer Walters, mas o que mais me fascinava era o desenho.
E que melhor maneira de ser iniciado nos super-heróis do que a ler histórias desenhadas pelo (agora) mítico, John Byrne. O desenho impecável do Byrne, com uma anatomia irrepreensível, poses dramáticas e um rendering expressivo, prenderam-me e daí para a frente, vasculhei todas as revistas que encontrei, em busca de desenhos deste Britânico, tornado Canadiano, tornado Americano.
Com o tempo fui lendo mais coisas. Umas mais recentes, outras anteriores e conhecendo mais artistas fantásticos como o avozinho deles todos, Jack Kirby, e também David Mazzuchelli, Bill Sienkiewicz, John Buscema e o incontornável e brilhante Frank Miller.
Depois, claro, os europeus, dos quais muitos há a destacar, como Gimenez, Bilal, Manara ou Giraud e um que, apenas descobri recentemente, Juanjo Guarnido, o desenhador do fantástico Blacksad.
Desde esses tempos, em que li a minha primeira aventura dos X-Men, que o meu interesse pelo desenho aumentou significativamente. Infelizmente, sempre senti que fazer BD era uma coisa mal vista – afinal, não passa de uma brincadeira para miúdos e não algo a ser levado a sério.
Sempre pensei que para passar a vida a desenhar era preciso ser-se fantasticamente bom por magia e ainda por cima ser-se Americano, Francês ou, claro, Belga.
Nada disto é verdade, mas ainda hoje em dia tenho dificuldades em explicar í s pessoas que qualquer um pode desenhar, que o desenho é uma disciplina profundamente prática e empírica que tem mais a ver com observar do que com mexer as mãos.
Normalmente, acham que sou tapado: não se vê obviamente que há pessoas que nascem com jeito para o desenho e outras não?
E foi precisamente este conceito (errado), que me afastou durante tanto tempo de uma coisa que eu realmente gostava de fazer. Para desenhar bem só é preciso uma coisa: praticar.
Quando cheguei í Faculdade, as coisas correram muito bem no primeiro ano, após o que me desiludi profundamente com o curso que escolhi tirar e com a instituição que era a Faculdade de Belas Artes naquela altura – arcaica, fechada e completamente autista í evolução do mundo í sua volta.
Uma Faculdade com dois cursos de Design, a funcionar no início dos anos 90 sem um departamento de computação gráfica era qualquer coisa de grotesco. Mas não só isso como os alunos que apresentassem trabalhos em que o auxílio de um computador fosse mais ou menos aparente, eram severamente penalizados.
Compreendo hoje, melhor que na altura, a necessidade da aprendizagem da teoria separada da tecnologia, mas espero, para bem de todos os meus colegas actualmente a estudar na FBA, que a escola tenha sofrido uma valente actualização, visto que hoje em dia, sem saber mexer em software gráfico, só se saltarem directos para Art Directors ou, claro, professores (those who can, do; those who can’t, teach).
Mas divago. A verdade é que o primeiro ano na, então, ESBAL, agradou-me particularmente por causa das aulas de desenho que eu consumia com alarvidade. Dava-me um gigantesco gozo desenhar e explorar as diversas possibilidades para além da representação do real.
Entrei para o curso sem perceber o que era desenhar e com 40% na prova específica de desenho e saí do primeiro ano entusiasmado com o desenho e com 16 na cadeira (uma nota excelente, para quem, basicamente, chumbou a prova de admissão). O meu professor de desenho achou que eu tinha potencial e quis demover-me do meu desejo de cursar design; quis convencer-me a ir para pintura.
Andei ali um bocado aos trambolhões, no fim do primeiro ano (que era genérico aos quatro cursos da Faculdade), e acabei por decidir não arriscar e alistar-me na legião dos ranhosos: os designers de comunicação.
Dos quatro cursos, o mais desprezado na Escola, sem dúvida: alguns dos professores formados em pintura e escultura que davam algumas das cadeiras mostravam algum desdém pelo nosso curso que estava na base da cadeira alimentar, depois da gloriosa pintura, da estupenda escultura e do razoavelmente aceitável design de equipamento.
Daí para a frente, foi sempre a descer. Depois de um primeiro ano de desenho verdadeiramente entusiasmante, tive um Desenho II para esquecer completamente; dado por um Arquitecto que tinha mais que fazer do que estar na escola e que vi, frequentemente, assinando o livro de ponto antes de se pí´r a milhas, deixando os alunos desinteressados e sem qualquer orientação.
E o mais frustrante é que o desenho tem tanta coisa para ensinar: existem técnicas, exercícios e regras que ajudam a que a parte de “mexer a mão” se solte, para que a parte de observar possa tomar o controlo.
Mas mais uma vez, parece negar-se a existência destas técnicas e regras, como se, o conhecimento de como descrever uma esfera por via da sua sombra própria, sombra projectada e luz reflectida retirasse algum valor ao resultado final.
Como se, em cada desenho, fosse obrigatório expressar, por meio de uma série de riscos ao acaso (desde que feitos a carvão, num estúdio sujo e a cheirar a água-rás), o drama incontornável da condição humana.
Uma vez perguntei a um professor de desenho como podia simular profundidade de campo, como poderia, com lápis, simular objectos desfocados. Ele riu-se e disse-me qualquer coisa sobre exprimir a ideia do objecto sem me preocupar com esse tipo de pormenores.
Leia-se: ele não sabia.
E é por isso que, um pouco por todas as escolas há pessoas a desenhar baldes de lixo, bancos, flores e bolas de futebol sem saberem o que estão a fazer. O desenho do real é a base para tudo e o melhor treino que se pode ter. Mas se acompanharmos esse treino com uma explicação das técnicas que permitem representar aquilo que vemos de maneira rápida e simples, o resultado final só pode melhorar.
Eu sei o que vejo, mas como devo representá-lo? Isso pode ser ensinado e é uma pena que não seja. Mas eu sei: é mais fácil pegar numa turma inteira de putos e sentá-los três horas a desenhar um búzio; ficam caladinhos, quietinhos e não chateiam muito e assim, de facto, apenas vão ser encorajados a desenhar aqueles que já trazem consigo alguma capacidade de o fazer, aqueles que instintivamente ou porque já desenham muito no seu tempo livre, perceberam como funciona o desenho.
Muitos anos depois disto tudo, descobri os DVDs da Gnomon Workshop e fiquei boquiaberto como alguns artistas do cinema e da BD conseguiam apresentar workshops de duas horas com tanto sumo, tanto conteúdo, tantas técnicas práticas que eu nunca, em toda a minha carreira escolar na via dita “artística”, desde o 9º ano, tinha ouvido. Das fantásticas paisagens do Ryan Church, aos básicos absolutos do Scott Robertson, passando pelos automóveis do Harald Belker. Há coisas tão básicas e tão simples de ensinar que ajudam tanto a libertar a criatividade das amarras da técnica que de facto me espanta como foi possível ter aulas de várias disciplinas artísticas durante mais de dez anos e nunca ter ouvido falar em nada disso.
Mas olhem, pelo menos, no fim do primeiro mês de aulas ou dois, tinhamos todos sempre uma merda de uma capa de cartollina para guardar os desenhos medíocres que fizessemos durante o resto do ano.