Raiva televisiva

Publicado em , por Pedro Couto e Santos

São 2:19 da manhã. Por volta das 22 sentei-me na sala para ver o regresso do X-Files e do Seinfeld, duas das minhas séries preferidas de sempre, que recomeçavam precisamente hoje.

Rocei ní­veis de desespero que nunca tinha experimentado. A Dee estava a dormir e ainda foi o que me fez aguentar-me… por várias vezes apeteceu-me gritar, dar pontapés na mobí­lia, partir vidros. A certa altura olhei longamente para a garrafa de Lagavulin 16 anos, single malt e pensei: “vou-me embebedar, pelo menos não sinto nada.”

Se tivermos em conta que o X-Files começou í s 23, descontando a hora em que gramei o “Crianças SOS”, a maior MERDA que vi na televisão nos últimos 17 anos, passei, desde as 23 até agora, 2:19 da manhã, três horas e dezanove minutos para gravar uma hora e meia de televisão. Uma hora de X-Files, meia hora de Seinfeld.

Estou moralmente derrotado. Nos Estados Unidos, li recentemente na Slashdot, o ratio de publicidade para conteúdo, é de 25/75… até já nos cinemas, ao que parece, se gramam 30 minutos de anúncios antes de um filme de 90 minutos. Hoje na TVI, o ratio foi pelo menos 50/50.

Entre as duas séries vi anúncios de automóveis, pensos higiénicos, bebidas alcoólicas, bancos e telemóveis. Sobretudo. No intervalo do X-Files (um dos…) deram o Financial Times, portanto já dão programas no intervalo de programas. No intervalo do Seinfeld deram notí­cias. Em todos os intervalos deram pelo menos duas vezes o anúncio do Bacardi, duas vezes o da Chrysler, duas vezes o da Optimus e duas vezes o do Martini Metz. Nalguns intervalos deram três vezes cada um dos anúncios anteriores.

A certa altura o Seinfeld acabou de dizer uma piada e a imagem cortou abruptamente para o caixão da Amália, com fado em fundo, para anunciar uma reportagem que vão passar em breve.

O Seinfeld começou í  faca a seguir ao X-Files, sem intervalo, sem publicidade. Depois fazem um intervalo de 20 minutos no meio de uma série com 30 de duração.

A primeira parte do Seinfeld era claramente um dos primeiros episódios da série. Os personagens todos ainda um pouco indefinidos, o cenário do apartamento com um ar antigo, a Elaine nem sequer aparecia, o genérico diferente e nada daqueles riffs de slap bass que ficaram som de marca mais adiante na série. Após o intervalo começou o que parecia ser um episódio novo, embora o primeiro tenha ficado pendurado, não teve fim (?), não percebi o que aconteceu, mas desta vez era claramente mais recente. Até o sofá da sala do Jerry era diferente. A situação que se tinha gerado antes do intervalo desapareceu e neste episódio já entrava a Elaine.

Ver televisão tornou-se uma tortura difí­cil de aguentar. Se um dia for capturado por qualquer agência de espionagem que queira obter qualquer informação minha, por exemplo, como fazer a melhor sandes de fiambre com tremoços, só têm que me obrigar a ver a TVI meia hora, que eu digo tudo. Quinze minutos e já começo a bater o pézinho nervosamente.

Depois, ver televisão faz-me ver a estupidez de uma forma muito í  Scott Adams. As pessoas são mesmo estúpidas. Toda a gente, a vasta maioria das pessoas. Estúpidas e incompetentes.

O mais giro é que toda a gente já ouviu dizer “ah, há tanta maldade, estupidez e mesquinhice no mundo”… mas no fundo não sabemos quem são essas pessoas más, estúpidas e mesquinhas… imaginamos que sejam drug lords da Colí´mbia, ou assassinos de crianças no Brasil, mas não… é mesmo toda a gente. Muitas vezes as próprias pessoas que dizem essa famosa frase, por vezes até mesmo nós próprios.

Por exemplo, quem disse que temos bons actores em Portugal? Quem? Estive a comer com o “Crianças SOS” í  espera do X-Files… aquilo é mau, mau, mau, mau, mau! Consegui reconhecer que o Rui de Carvalho fazia bem o papel dele. Tem muitos anos de experiência e parece ser uma pessoa inteligente, parece, não o conheço, mas parece. Agora o resto do elenco é tão mau, tão mau, tão absolutamente execrável. Mas nada os ajuda, coitados, não sei se são só maus actores, ou sequer se são muito maus actores, porque o texto é mau, o contexto é mau, as situações são más, até a porra do cenário é mau. A parte supostamente cómica em que um tipo leva o filho ao médico, mas como tem trigémeos engana-se duas vezes e leva os miúdos errados e depois, quando se apercebe do erro, toca a musiquinha “toing-toing-toing” para nós percebermos que é um momento cómico. Mas o actor é mau, o personagem é mau e se fosse mesmo assim, está mal caracterizado.

Depois toda a experiência televisiva é dolorosa. Por exemplo, a TVI dá uma notí­cia sobre a comissão que descobriu que os gestores da Expo foram incompetentes (ah, grande surpresa, mostrem-me gestores portugueses competentes, que eu quero ver), mas a grande notí­cia não é o tal relatório emitido pela tal comissão.. não! a grande notí­cia é que a TVI teve o exclusivo! Isso sim, é notí­cia. Falaram disso em dois blocos noticiosos e no Financial Times, mas sempre sublinhando que era uma notí­cia TVI, porquê? Foram eles que escreveram o relatório? Foram eles que foram notí­cia? Não, mas foram eles que obtiveram o exclusivo e que se lixe o resto.

Reparem que eu estava satisfeití­ssimo, X-Files e Seinfeld! Mas isto foi apenas uma amostra… todas as segundas-feiras… vai ser o mesmo e pior: o Seinfeld vai ser diário. Imagino quando começar a mudar radicalmente de horário de dia para dia, quando se “esquecerem” de dar ou quando resolverem que afinal é só í s quartas-feiras.

E o Big Brother…? Já viram a publicidade í quilo? Já toda a gente reparou que o logotipo do programa PARECE UM LOGOTIPO DE PENSOS HIGIÉNICOS, menos os produtores do programa, suponho. E mais… moralidade í  parte, que se lixe, os dez gajos que vão viver numa casa 120 dias para serem filmados em directo têm que ser idiotas e têm o que merecem, mas… 20 mil contos para quem “sobreviver”? 20 fucking mil contos? Estão a gozar com quem? O Carlos Cruz dava 50 mil por se acertar em 15 perguntas palermas e estes idiotas vão dar 20 mil por esta experiência degradante?

Bem, não falemos dos concursos “quero ser milionário agora mesmo, aceito 150 mil contos por me porem uma bala na cabeça, por favor façam-no já!” Agora há um na Sic (com o Carlos Cruz, pois) e pelo menos dois na TVI, acho eu, pelo menos foi o que percebi pelos anúncios que insistentemente me foram martelados três horas a fio hoje.

E os telemóveis de 25 contos com 25 contos de chamadas? Aparece um, vêm todos atrás, todos fazem isso agora. E o horário de verão? Todos têm horário de verão… durante a noite, x escudos por minuto. Tudo igual. São como cães, o primeiro vem e mija, o segundo cheira e mija, o terceiro cheira e mija, volta o primeiro e torna a mijar.

Hoje levaram o meu cérebro ao limite.

O Mulder afinal é extraterrestre. ADORO o Chris Carter, O Mulder e a Scully NíƒO ESTíƒO APAIXONADOS e não se beijam, raios, aquele gajo não me desilude, esta série é BOA. É a única coisa que vale a pena… se não fossem os X-Files, se não fosse o Seinfeld, tinha desistido. Não aguento tamanha quantidade de cultura mediática portuguesa, não.

Não acredito, por exemplo, que a Cristina Caras Lindas tenha um programa chamado “Directo ao Coração”, cujo sí­mbolo é ela com um sorriso de freira e uma pose de playmate e no qual vai falar de injustiças sociais e sofrimentos, tendo como convidados o João Soares, presidente da Câmara de Lisboa e a ígata. Como é que é possí­vel, muito sinceramente, levar isto a sério? Como é que eu posso sentar-me e aceitar impavidamente que um dos polí­ticos eminentes do paí­s que tem algumas possibilidades de se vir a candidatar í  presidência, aceite sentar-se í  mesma mesa com a ígata para discutir problemas sociais com alguém como a Caras Lindas (mas de onde é que ela veio?).

Não há patriotismo que resista.

Hoje recebi um telefonema da Netcabo.

Há uns meses atrás a Netcabo estava anunciada para a minha zona para 14 de Abril, no site deles. Esperei. A 14 de Abril, o site passou a dizer: indisponí­vel e sem previsão.

Contactei com eles, disseram-me que realmente ainda não havia e tal, mas que registavam o meu interesse e que estava para breve. Fartei-me de esperar e na semana passada encomendei RDIS í  PT. Hoje telefonaram-me da Netcabo.

Disse í  menina que sim, estava interessado, mas que já tinha contactado com eles e tinham-me dito que não havia em Almada… ela riu-se e disse que sim, já havia.

Riu-se… deve ser uma piada interna da PT que só os empregados da PT compreendem. Enfim, também, são obrigados a trabalhar numa das empresas mas idiotas do paí­s, coitados.

Amanhã vem cá um delegado comercial da Netcabo para me dar informações… vamos ver o que sai daqui.

Há alturas em que realmente a televisão é um meio de comunicação excepcional. A sessão televisiva que tive hoje, a qualidade da série portuguesa, das notí­cias, o conteúdo e as ideias por trás da publicidade produzida cá, o teor das apresentações sensacionalistas dos programas mais banais, fez-me ver o ní­vel de estupidez nacional instituí­da. E não vale a pena fugir, porque, como diz na parede do Solar dos Leões, a casa do Sporting de Almada: “Eles andem aí­”…

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